Por Jorge Béja

 

A manchete de hoje, 2 de novembro de 2015, de O Globo: “Detentos impõem ‘código penal’ próprio em presídios”. O subtítulo: “Punições incluem estupro coletivo, canibalismo e esquartejamento”. E ainda na capa do jornal: “Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA cobrou providências do governo brasileiro. Os detentos confinados nos presídios brasileiros criaram “códigos penais”, com punições que incluem canibalismo, esquartejamento e estupro coletivo, informa Alessandra Duarte. O levantamento, feito com base em dados do Ministério Público, do Conselho Nacional de Justiça e da ONG Justiça Global, cita casos como o ocorrido em 2013 no Complexo de Pedrinhas (MA), onde um preso, após ter sido torturado e morto, teve pedaços do seu fígado assado e comido. Seu crime: ofender outro detento ligado a uma facção criminosa. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA cobrou do Brasil garantia à integridade dos presos”. Essa é a chamada de capa do jornal. A reportagem completa está na página 3.

MINHA LUTA

Por 18 anos seguidos (1972 a 1990), sozinho e desafiando a ditadura,defendi a causa dos presidiários. Naquele período, como advogado, dei entrada na Justiça com 33 ações contra o Estado, exigindo indenização para os familiares dos detentos mortos nos presídios do Rio. Delas, apenas três não obtiveram êxito. Todas as 30 outras foram julgadas procedentes em todas as instâncias por onde tramitaram. Foram causas que também advoguei graciosamente. Recusei honorários, mesmo depois das indenizações pagas.

Muitos dos “casos” me foram enviados pelo saudoso e combatente Jornalista Tim Lopes que ligava para meu escritório e dizia: “Béja, vai aí a família do preso fulano de tal, que foi assassinado no presídio da Frei Caneca”. Presídio da Frei Caneca era um do complexo penitenciário do Rio. Mas o Tim me mandou famílias de presos mortos em outros presídios, todos do Rio. E muitas outras famílias, sem a intermediação de Tim, me procuravam porque, naquela época, pelo ineditismo, as ações indenizatórias contra o Estado por mortes nos presídios eram novidade. Por isso ganhavam as primeiras páginas dos jornais e meu nome e minha foto apareciam, o que me fez bastante conhecido. E a projeção ultrapassou fronteiras quando o NY Times me entrevistou e recebi do americano Ralph Nader telegrama de felicitações, apoio e incentivo para continuar a luta.

DEVER DE RESSOCIALIZAR

Era um ideal que perseguia. Era o ideal da ressocialização do preso. Levei à consideração do Judiciário que desde o instante do encarceramento, até o dia da libertação, o Estado tem o dever, impostergável, de garantir a segurança, física e moral, dos detentos. De dar a eles ocupação, trabalho remunerado e devolvê-los recuperados ao seio social. Reclamava que o Estado desconhecia que, mesmo condenado, o detento continua ser humano. Que seus erros não lhe tiram a proteção da sociedade. Pelo contrário, dela exigem todas as atenções, cuidados e empenho no cumprimento do dever, legal e social, da sua recuperação.

Nas petições, escrevia sempre que o Estado não pode lamentar as despesas que tem com o sistema penitenciário, nem classificar de luxo os gastos com os encarcerados. Que o Estado não investiria em vão se recuperasse, como deveria recuperar, aqueles que um dia concorreram para romper o equilíbrio social. Que era o múnus que a coletividade impunha ao Estado. Que era de sua própria natureza e de sua função orgânica. Que o condenado, enquanto preso e no cumprimento da pena, sabe que está sob a proteção e guarda do Estado. E continua com todos os direitos de ser humano.

NADA MUDOU

Mas tudo isso era teoria e utopia. Minha ingenuidade me levava a crer que o Estado chegaria à conclusão que seria proveitoso gastar com a ressocialização do que gastar com as indenizações. Que bobagem! Era uma ficção que jamais se tornaria realidade, porque na prática, já naquela época, a situação era tão grave quanto a de agora.

“O que ocorre diariamente nas prisões, em matéria de violência e arbitrariedade, é inimaginável. As condições de vida lá dentro são péssimas. O sistema está falido. A comida é péssima, nada nutritiva. A assistência médica, péssima também. Cansei de ouvir depoimentos de presos que garantiram que só eram atendidos quando estavam na porta da morte. Apesar disso tudo, a sociedade prefere fechar os olhos e esperar que ele seja ‘ressocializado’ por um toque de mágica, que ele saia um professor ou motorista de táxi. Mas como? É assim que pretendemos recuperá-los? O que eles aprenderam na prisão”. Foi com essas palavras que a socióloga Iolanda Catão estigmatizou o quadro do sistema carcerário nacional 3 ou 4 décadas atrás.

BATALHA PERDIDA

Hoje, reconheço que perdi meu tempo. Que preguei no deserto. De nada adiantou tanto empenho nosso, querido Tim Lopes! Da eternidade, onde você se encontra, veja o que está acontecendo 30, 40 anos depois! Tudo está muito pior, Tim. O próprio ministro da Justiça da atualidade declarou que preferia morrer a cumprir pena nas penitenciárias brasileiras, deste Brasil do qual é o ministro! E ministro da Justiça!. Essa praga que é o sistema carcerário nacional não vai ficar menos pior nunca. A cada dia se agrava ainda mais.

Se a nós, inocentes, que não cometemos crime algum e nem somos condenados, não nos é dado o direito de viver com relativa segurança, em casa, nas ruas, no trabalho e em todos os lugares, como poderemos esperar que o poder público dê aos culpados-detentos o tratamento digno que a própria Constituição a eles garante e que a nós, vitimados, é negado?: “É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” ( CF, artigo 5º, inciso XLIX ).

É uma comparação que dói fazer, porque, indistintamente, todos somos pessoas humanas, criaturas de Deus, e que deveríamos ser o alvo prioritário e nº 1 de todos os governos, de todos os países, de todos os povos… Do planeta inteiro.

 

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