Por Francisco Feitosa e Diego Salazar

Não há, na Constituição da República Federativa do Brasil, a expressão “foro privilegiado”. Nem “foro especial” ou “foro por prerrogativa de função”. Nada, enfim, que indique qualquer privilégio ao príncipe e seus pares.  Em linhas gerais, nada tem de privilegiado, mesmo porque a etimologia do vocábulo “privilégio” já denuncia sua origem no Direito Privado, inconciliável com a igualdade que há de caracterizar as democracias contemporâneas, notadamente em matéria de representação política. Aliás, até se admite que o foro seja, sim, privilegiado, mas em favor de outra pessoa que não o príncipe. Afinal de contas, a que veio o tal “foro privilegiado”?

Sabe-se que o senador-pai, Edison Lobão (PMDB-MA) pretende licenciar-se para garantir foro privilegiado ao filho, seu suplente, para livrá-lo de prisão iminente na primeira instância. Notícia verdadeira ou falsa — não vem ao caso, porque se trata de refúgio e proteção à delinquência, sob o manto da lei. Também recentemente, a nomeação do ex-presidente Lula para ministro. Há de ser assim? Sempre foi, mas deixou de ser.

IMPUNIDADE

Disse André Petry, na revista Veja: “O foro privilegiado, criado no Brasil imperial, não presta para nada, a não ser para jogar lenha na fogueira da impunidade e dividir os brasileiros entre a minoria da casa-grande e a maioria da senzala”.

Como bem ressalta a jurista Maria Lúcia Karam, “não se trata de privilégio pessoal para favorecer o réu, como a crítica apressadamente costuma apontar. Na realidade, a competência originária de tribunais poderá desfavorecer o réu. Pense-se na possibilidade de recorrer contra o procedimento condenatório. Quando atuante o juiz de 1º grau, um pronunciamento poderá ser revisto e modificado pelos órgãos superiores, e tal possibilidade se estreita ou se exclui. A competência por prerrogativa de função não é, pois, um privilégio”.

Era privilégio, com certeza, até o advento da Emenda Constitucional nº 35/2001, que aboliu a prévia licença de Câmara ou Senado à abertura da ação criminal de parlamentar. Casos houve, notórios assassinos repetiam o mandato, justamente a se homiziarem, na certeza de que a permissão não seria dada, Muitos morreram sem processo algum. Mudou?

MUDOU E NÃO MUDOU

A licença prévia de Câmara e Senado foi abolida, há 15 anos, pela EC nº 35/2001. Mas ainda existe um atalho para não-processar/não-julgar, mantendo-se o privilégio em toda a sua essência. Ou o representante do Ministério Público não denuncia; ou, denúncia apresentada, o julgador decreta segredo de justiça, senta em cima e, per omnnia saecula saeculorum, depois o declara prescrito, como acaba de acontecer com Renan Calheiros, presidente do Senado. E sabe-se que o senador Romero Jucá tem inquérito estacionado no Supremo há doze anos.

O fato é que, após a eliminação do corporativismo de Câmara e Senado, que negavam a licença para processar parlamentar, o instituto jurídico “foro privilegiado”, ou a proteção dele decorrente, tem de estar a serviço da cidadania, em harmonia com o princípio republicano, com a igualdade democrática, com a moralidade e com a regra da “ficha limpa” da Lei Complementar nº 135/2011.

Com base na harmonização desses princípios, o Supremo afastou o presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Então, os ventos mudaram. Com certeza: mudaram! Começamos a nos dar conta de que o foro privilegiado não mais pertence à Câmara ou ao Senado, que até a EC 35/2001 o manipulavam, concedendo ou não a licença para processar (que, a rigor, nunca concediam).

MANIPULAÇÃO

Vemos agora que, extinta a licença prévia, o foro privilegiado passou a sofrer pesada manipulação, tanto pelo MP como pelo respectivo tribunal. Deveras, o “não-denunciar” e o “sentar em cima”, anos a fio, equivalem a garantir ao acusado refúgio e proteção contra o Direito — a impedir, como numa prevaricação, que o foro privilegiado (que é do povo!) garanta à República que o ilícito seja apurado e julgado. Um inquérito no Supremo não pode demorar 12 anos.

O ministro Luís Roberto Barroso defende o fim ou a redução do foro privilegiado, dizendo que, desde que o Supremo começou a julgar parlamentares em 2001, já houve 59 casos de prescrição de crimes.

A opinião do Ministro Barroso estaria perfeita ao tempo anterior à EC 35/2001, quando o Parlamento impedia que qualquer dos seus pares viesse a ser denunciado. Hoje, não. Quinze anos passados, o sistema permite que o Procurador denuncie, que o Supremo julgue e que ambos sejam interpelados por qualquer cidadão – exercício da cidadania.

DIFERENÇA DE TRATAMENTO

Significativo, nesse episódio chamado Lava Jato, que, em relação a Eduardo Cunha, tenha ele sido denunciado, a denúncia aceita e o acusado suspenso da presidência e do mandato parlamentar, tudo isso em tempo recorde. Queixa-se ele, ao vivo e a cores , de que há uma “seletividade”, porque o rival, RenanCalheiros, carrega dois dígitos de denúncias/inquéritos no espinhaço, alguns com mais de dez anos. E Renan responde que Cunha tem uma fixação pelo nome dele…

Em suma, em vez da publicidade e moralidade, há um campeonato de quem tem processos mais antigos, tal qual esse do ex-ministro Jucá, como se fosse uma boa marca do melhor uísque, de doze anos. Do contrário é aguardar o próximo recorde, vinte anos, o rótulo azul do Royal Salute!

 

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