Por Pedro Coutto
O brilhante ator Domingos Montagner, no auge de sua carreira, como destacou Patrícia Kogut em belo artigo na edição de sexta-feira de O Globo, mergulhou para sempre nas águas do rio São Francisco, cenário principal da novela da Rede Globo, que o consagrou e o incluiu na lista das grandes intérpretes da dramaturgia brasileira. Seu desempenho foi espetacular e com ele deu vida e força tanto ao personagem Santo, como à própria novela construída pela televisão, a partir da história de Benedito Ruy Barbosa.
Por uma trama do destino, o desfecho trágico aproximou o personagem do próprio ator, separando-os por capítulos diferentes. No primeiro, o da arte, foi salvo das águas nem sempre calmas por uma aldeia de índios. No segundo, a realidade da vida humana foi tragada pelas correntes de seu cenário. O ator e o personagem separam-se nos dois episódios. Neste último encerrando sua presença nos palcos e nas telas, nos quais tanto se destacou. O ser humano se foi na correnteza, mas o personagem viverá para sempre.
VIDA E ARTE – Não são raras, como se possa pensar, as rupturas entre a vida e arte, melhor dizendo, entre o caráter existencial daqueles que representam as emoções que atingem a todos nós, e suas representações na fantasia. Aliás, realidade e fantasia são marcas indeléveis da vida. Afinal de contas, como me disse um dia meu amigo Antônio Houaiss, ninguém escreveu ou simbolizou até hoje nada que não tivesse acontecido. O jogo das situações, isso sim, é um outro assunto.
Afinal de contas não se pode representar o que não existe, seja no passado, seja no presente.Os personagens, às vezes, absorvem os atores e atrizes e os levam a não separar as esferas da arte e da realidade, uma vez que a arte em si mesma produz realidades várias e sucessivas.
DUALIDADE DA VIDA – Um filme famoso, o maior filme francês de todos os tempos, e também um dos maiores do cinema, Les Enfants Du Paradis, de Marcel Carné, 1942, feito, portanto, durante a ocupação nazista do país, reflete bem a dualidade existente e os limites entre a arte e a vida.
O personagem do grande Jean Louis Barrault, por exemplo, constitui exemplo típico: um pierrot no palco, um pierrot na vida real (da representação); Pierre Brasseur, Otelo no palco, ciúme de Otelo na vida real do personagem. Agora, Domingos Montagner pode ser acrescentado ao rol interminável do transporte emocional entre a vida individual e a vida que os grandes atores fornecem aos personagens que destaca.
Um rompimento entre o sonho e o despertar, ao mesmo tempo uma ponte de emoção entre o ego de cada um e a idealização que projetam aos desempenhos que marcam e, em diversos casos, eternizam suas carreiras. Não é fácil o ator e a atriz libertarem-se dos personagens que vivem ou que viveram.
AUTRAN EM HAMLET – No passado, Paulo Autran, que viveu Otelo ao lado de Tônia Carrero, Felipe Wagner (como Iago), e Margarida Rey, depois do sucesso absoluto de 1956 afirmou que se orgulhava de ter vivido no palco o mouro de Veneza. Levou o personagem consigo para a memória brilhante que legou ao teatro brasileiro. Outros exemplos existem, outros exemplos existirão, sempre projetados pelo talento característico da arte. O mesmo talento que Montagner levou consigo para as águas do rio, cenário de sua vida e de sua morte.
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