Por Marcelo Tognozzi
Quem entra na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, pode conferir, entre as fotos dos ex-presidentes, o retrato de um homem que transmite enorme sensação de serenidade. O dono daquele rosto tinha uma marca: nunca abrir mão das suas convicções.
O potiguar Djalma Marinho teve um mandato suspenso na época do Estado Novo, era conservador, udenista, apoiou o golpe de 1964 e se elegeu pela Arena. Advogado brilhante, seu lema era a Constituição acima de todos.
Elegante, culto e educado, presidia a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em 1968, quando o governo decidiu processar o deputado Marcio Moreira Alves por um discurso considerado ofensivo às forças armadas. Entrou no Palácio do Planalto dias antes do AI-5. Com firmeza e tranquilidade explicou ao presidente general Costa e Silva porque a Câmara negaria autorização para processar Moreira Alves: “A Constituição permite que a tribuna seja livre, presidente. O deputado pode se demasiar no discurso. O que a Câmara está defendendo é a liberdade da tribuna, não os dizeres do deputado”.
Costa e Silva ouviu, resmungou e dispensou Marinho. Quando a situação ficou insustentável, ele renunciou à presidência da CCJ recitando a máxima do dramaturgo espanhol Calderón de La Barca: “Ao rei tudo, menos a honra”.
Sertanejo euclidiano, doutor em sobrevivência, era antes de tudo um resiliente. Voltaria à Câmara reeleito em 1970 pela Arena. Derrotado em 1974 na disputa para o Senado, voltou ao Congresso em 1978 defendendo a anistia, tornada realidade no ano seguinte. Defendeu a legalização do Partido Comunista, por entender ser a convivência e a tolerância pilares da democracia.
Djalma Marinho morreu cedo, 73 anos, no dia 26 de dezembro de 1981. Ainda não tinha herdeiro político.
Seu neto Rogério era um garoto de 18 anos naquela véspera da primeira eleição de governador desde o fechamento do regime no fim dos anos 1960. Sua vida de político não foi fácil. Concorreu a vereador pela primeira vez em 1994 filiado ao PSB. Chegou a assumir uma cadeira como suplente, mas somente 10 anos depois conseguiu votos para entrar na Câmara de Natal como titular. Daí para frente sua carreira política deslanchou. Em 2006 foi eleito deputado federal, se destacando como relator de propostas importantes tanto na economia quanto na educação.
Terminou a primeira década dos anos 2000 como um player relevante na política do Rio Grande do Norte e respeitado pelas suas habilidades como articulador e economista. Em 2009 trocou o PSB pelo PSDB e perdeu a eleição em 2018. Teve 60 mil votos.
Rogério é incansável, obcecado e resiliente como o avô. Chegou no governo Bolsonaro como secretário de Previdência e Trabalho, pasta abrigada no guarda-chuva de Paulo Guedes reunindo as atribuições do antigo Ministério do Trabalho.
Com uma ampla base de apoio no setor de comércio e serviços, Marinho foi discreto e eficiente. Um ano depois era ministro do Desenvolvimento Regional. Nos últimos dias marcados por debandadas no Ministério da Economia, ele tem sido citado, elogiado e intrigado como opositor da política de Paulo Guedes.
O que separa Guedes de Marinho são suas origens. O primeiro saiu da Zona Norte para a Zona Sul do Rio. O segundo, do Nordeste para Brasília. Guedes é um refinado economista da escola de Chicago, um scholar rico sem intimidade com o improviso e, como bom operador do mercado financeiro, amante da previsibilidade. Marinho é um artesão do inesperado, crescido e sovado no vai e vem das incertezas da política, onde a palavra acaba tendo mais valor que os contratos –o jogo jogado do saudoso Luís Eduardo Magalhães.
O presidente Bolsonaro quer a reeleição. A pandemia –ou o imponderável– deu a ele uma base no Nordeste e entre os eleitores mais pobres, 67 milhões de brasileiros recebedores do auxílio emergencial de R$ 600. Quando o ministro Onyx Lorenzoni começou a trabalhar nisso, o cadastro único tinha 75 milhões de pessoas, 15 milhões delas não possuíam CPF e um sem número de outras eram vítimas de falsários, como o caso de um contribuinte milionário que um dia viu um depósito de R$ 600 na sua conta, não tinha a menor ideia do que era aquilo e chamou a polícia.
Hoje, o governo tem um cadastro que acima de tudo é um patrimônio, uma riqueza em informações sobre os brasileiros das classes C, D e E. Trouxe a maior parte deles para o sistema bancário e o banco virtual da Caixa, agora com 50 milhões correntistas, muitos deles invisíveis seis meses atrás. Sem estes 67 milhões de brasileiros a reeleição não tem lastro nem fôlego.
Para Bolsonaro a austeridade fiscal de Guedes é o pijama da aposentadoria de ex-presidente. Por isso os olhinhos do presidente brilham quando ouve Rogério Marinho falar em injetar dinheiro público para movimentar a economia, como fez Roosevelt no New Deal, política transformada em teoria econômica por John Maynard Keynes.
A batalha que saiu dos bastidores para a mídia está apenas começando. Seu desfecho dependerá de múltiplos fatores, a maioria deles por enquanto mais favoráveis a Marinho do que a Guedes, a começar pela aproximação do Planalto com o Centrão e a necessidade de sobrevivência política da maioria –incluindo o clã Bolsonaro– vinculada à retomada do emprego, da geração de renda e do giro da economia.
Embora Bolsonaro tenha enorme apreço por Paulo Guedes, é suficientemente pragmático na hora de se despedir dos auxiliares como aconteceu com Sergio Moro. Rogério, herdeiro de Djalma, aprendeu a fazer política sem ódio e a entender o homem comum, o invisível que ganhou um CPF e os R$ 600 do governo. São coisas que o sujeito traz no DNA.
Derrotado por Nelson Marchezan na disputa pela presidência da Câmara em 1980, os adversários do veterano potiguar vieram até ele: “Deputado, não guarde mágoa”. E Djalma Marinho, sereníssimo: “Eu não consigo guardar nem dinheiro”…
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