Por Marcelo Tognozzi*

“Mazzilli impossível”, sentenciou o presidente-marechal Castello Branco ao vetar a candidatura do deputado Pascoal Ranieri Mazziilli à presidência da Câmara. Castello tinha assumido o poder em abril de 1964. Trocara o uniforme pelo terno e a gravata, algo que visivelmente o incomodava. Com apenas 1,64 metro, o marechal dentro daquela roupa civil se tornava um ser desengonçado, cujo destaque eram os sapatos incrivelmente reluzentes, lustrados diariamente por um taifeiro com doses generosas de nugett.

Naquele 18 de fevereiro de 1965, o marechal falou com seu jeito franco de militar acostumado a mandar. No gabinete, diante dele, um grupo de raposas políticas do velho PSD integrado por Amaral Peixoto, José Maria Alkmin, Benedito Valadares, Filinto Muller e Martins Rodrigues. Aquela matilha de raposas engoliu a ordem de Castello, atravessou a Praça dos Três Poderes e foi comunicar a Mazzilli que sua candidatura à presidência da Câmara, cargo que ocupava desde 1958, estava definitivamente morta e enterrada.

Depois de Mazzilli, somente Rodrigo Maia sentou-se por tanto tempo naquela cadeira, cujo ocupante é o 2º na linha sucessória do poder. Não sei se Maia se deu ao trabalho de conhecer Mazzilli. Teria aprendido bastante com o homem que veio de longe, da desconhecida Caconde, tão pequena que hoje ainda é quase uma vila com seus 20.000 habitantes, fincada fronteira de São Paulo com Minas. Fez carreira como coletor de impostos e chegou ao topo como chefe do antigo Dasp (Departamento de Administração do Serviço Púbico). Era alto, elegante, perfumado, cabelo gomalinado, um tipão de filme italiano dos anos 1950. Mas por trás daquela imagem havia uma saúde frágil. Sofria de anorexia, uma azia recorrente, problemas renais e sequelas de uma doença pulmonar mal-curada.

Rebateu a má notícia com um comprimido de pepsamar. Sabia que sua trajetória tinha chegado ao fim. As raposas pedessistas miravam Mazzilli como quem assiste à agonia de um bezerro no pasto picado por uma cascavel. Nos últimos anos ele ocupara a Presidência da República em 2 momentos cruciais: após a renúncia de Jânio Quadros, de 25 de agosto a 7 de setembro de 1961, quando João Goulart tomou posse, e de 2 a 15 de abril de 1964, antes de entregar o poder a Castello.

O deputado Nelson Carneiro, eleito pelo PSD do Rio, baiano, advogado e cuja coragem era inversamente proporcional à aparência magra e frágil, avisou Mazzilli que revidaria da tribuna a ousadia de Castello em intervir na Câmara como se fosse um puxadinho do Palácio do Planalto. Fez um discurso irônico, arrancando gargalhadas do plenário e azedando os militares. “O marechal Castello Branco não pode ser o homem que transaciona com deputados oferecendo empregos e benefícios”, cutucou Nelson.

Os aliados do governo reagiram e um burburinho se formou no plenário. Nelson então deu no fígado: “No dia 1º de abril, quando os rumos do país ainda não estavam definidos, o senhor Mazzilli atendeu a um telefonema do general Costa e Silva. O atual ministro da Guerra apelava para que o presidente da Câmara assumisse imediatamente a Presidência da República a fim de evitar derramamento de sangue. E o senhor Mazzilli, imperturbável, respondeu-lhe: general, o Congresso vai se reunir hoje. O que o Congresso decidir, eu cumpro”.

Bilac Pinto da UDN, candidato do governo, sucedeu a Ranieri Mazzilli que naquele ano ajudaria fundar o MDB, partido de oposição ao regime. Manietado politicamente, caiu em desgraça e, na eleição seguinte, o máximo que conseguiu foi uma 6ª suplência. Muitos dos seus companheiros de PSD acabaram na Arena, partido de sustentação do regime militar, entre eles Filinto Muller, Benedito Valadares e José Maria Alkmin, participantes da reunião na qual Castello declarou o veto a Mazzilli e o empurrou para a porta de saída da política.

Sem votos e sem poder, teve sua reputação destroçada por inimigos que não economizaram na maldade do apelido: o chamavam de “modess”, porque era descartável e tinha o dom de estar sempre na hora e lugar certos para evitar derramamento de sangue. O poder não perdoa. Até poucos dias antes do fatídico 18 de fevereiro, ele era forte, inteligente, imbatível.

Foi uma lição dolorida e definitiva. Os militares lhe impuseram uma decadência precoce aos 55 anos. Sem poder e influência, alvo do escárnio dos adversários, Pascoal Ranieri Mazzili foi condenado ao esquecimento. Tomou as rédeas da sua fazenda de café em Ouro Fino, Minas, e lá trabalhou até sua morte aos 64 anos, na UTI do Hospital Oswaldo Cruz, na madrugada do dia 21 de abril de 1975.

Naquela 2ª feira, o Brasil iniciara a campanha de vacinação para combater uma epidemia de meningite e o ministro da Justiça, Armando Falcão, virou manchete ao declarar em alto em bom som que “a Revolução continua ativa e forte”. Após cerimônia simples, quase acanhada, Mazzilli foi enterrado no Cemitério do Araçá sem honras e pompas de chefe de poder. A Câmara suspendeu seus trabalhos num dia já tradicionalmente esvaziado. A Folha noticiou sua morte num cantinho da 1ª página. O Estadão, não deu importância. A última década apagara seus rastros.

*Jornalista. Texto publicado originalmente no site Poder 360.

 

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