Por Roberto DaMatta / O Globo

Seria excelente tema para um filme de Luis Buñuel. Um país que viveu o terror e a violência da perda de seus direitos cívicos, que sofreu censura e tortura em pelo menos duas ditaduras e delas se livrou, tem hoje como problema aquilo a que toda democracia aspira: eleições livres em urnas praticamente invioláveis. Não é surreal — pergunta um lado meu — viver o rito essencial de uma democracia, o processo eleitoral, como um problema?

A resposta exige tato e coragem para explicitar contradições, coisa que poucos, muito menos nós, brasileiros, gostamos de realizar, já que a postura compreensiva exige sair dos nichos que levam a acomodar e adiar questões políticas básicas, esquecendo que, um dia, a fatura chega com inevitável crueza.

BEM CONTRA O MAL – A pergunta que ninguém gosta de fazer, mas existe em todo confronto, é a seguinte: quem se confrontará e, mais profundamente, quem tem legitimidade para concorrer. Nélson Rodrigues dizia que o Fla x Flu existia antes da criação do mundo.

No seu genial estilo exaltado, chamava a atenção para as oposições binárias que nos seduzem porque, como seres humanos sem programação biológica exclusiva e podendo nos exprimir em múltiplas línguas e hábitos, a dualidade de um Fla x Flu nos leva à polaridade cósmica do bem contra o mal, com a atraente possibilidade de atribuir o mal absoluto ao Flu se você for Fla ou ao Fla se você for Flu.

Não é por acaso que polarizamos e que a dualidade domina nosso universo simbólico, feito de línguas cujo esqueleto é uma escolha arbitrária de sons e sentidos. E que, apesar de termos uma multidão de partidos, no final as escolhas se reduzam a uma dualidade.

JOGO POLÍTICO – Trata-se de um Fla x Flu, só que é um jogo que, nos próximos quatro anos, definirá aspectos fundamentais da nossa vida social como um todo, e não apenas num domingo esportivo. Com direito a mais quatro… Ou, quem sabe, e há quem suponha, para toda a História…

“Qual é a questão?”, pergunta o leitor armado de seu voto. É que, para mim, como para muitos outros brasileiros, os candidatos são opostos, mas ao mesmo tempo parceiros. Coadjuvantes históricos, porque foi o governo petista de Lula que colocou no palco Jair Bolsonaro.

A pesquisa que não foi feita seria para saber se Bolsonaro teria chance antes do mensalão, do petrolão e das delações premiadas da Operação Lava-Jato.

AFETA NOSSAS VIDAS – Bem diferente de um Fla x Flu é o dualismo Bolsonaro x Lula, que tem o potencial de afetar nossas vidas. No caso do futebol, as contradições são bloqueadas. Na política, porém, vale tudo.

Assim é que Lula tem como vice um tucano e que Bolsonaro usa como argumento recorrente a antipatia pela impessoalidade da urna eletrônica, numa demonstração óbvia de aversão pelo processo eleitoral democrático.

Lula tem como contrapeso a condenação em todas as instâncias e a prisão. Mas, se ele foi solto por erro de julgamento, Bolsonaro agride rotineiramente as instituições republicanas. Há uma retroalimentação de defesas e acusações, e o temor dos democratas é que tal ambiguidade liquide o ideal de liberdade e igualdade e que legitime o axioma favorito dos radicais, segundo o qual os fins justificam os meios.

O MENOS RUIM – Se Bolsonaro e Lula estão dispostos a abandonar a confusão entre ser presidente e ser ditador, é justamente o que me angustia nesta eleição.

A polarização tem raiz justamente nas contradições verbalizadas pelos candidatos. Escolher o menos ruim é, na democracia que promete progresso, desanimador.

Tudo é complicado, mas não podemos esquecer que o Brasil brasileiro, do Fla x Flu e dos ideais democráticos, é mais forte que suas contradições e seus péssimos protagonistas políticos.

 

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