Por Márcio de Freitas*
O governo de Lula III tem uma dissonância cognitiva para solucionar após seus primeiros 100 dias. Entre suas palavras e atos há um imenso vão de sentido a ser preenchido. Há fatos favoráveis na normalidade democrática e iniciativas positivas visando retornar programas de cunho social. Em meio aos atos, contudo, há palavras truncando a tradução da administração na aferição da popularidade que turvam o sentido e a direção do governo.
“As palavras foram dadas ao homem para esconder os pensamentos”, é frase que se atribui ao francês Talleyrand, personagem político que passou do apoio aos nobres, colaborou com os revolucionários franceses de 1789, foi ministro de Napoleão e terminou abraçado aos Bourbons quando voltaram ao trono. Sabia como poucos esconder seus pensamentos, como se pode notar na curta biografia.
No caso de Lula III, as palavras escondem o governo atrás de biombo de conflitos estéreis que não sinalizam nada com clareza. Nem sempre se percebe a real intenção por trás das polêmicas e conflitos estabelecidos: seja nas relações internacionais quando se fala da Ucrânia; na desconstrução do governo desfeito de Jair Bolsonaro; na reabilitação de Sérgio Moro com um juízo de valor fora de hora ou na guerrilha à credibilidade do Banco Central.
Ao fim e ao cabo, a principal polêmica é a contradição ao próprio discurso de campanha. A união nacional é um diabo dançando na estrada, no meio do rodamoinho. Afinal, existe ou não esse pacto? O senhor acha mesmo que…?
Lula se comprometeu com um Brasil só. Note-se que a complexidade do país não entrou nas considerações com poréns. Até agora, porém, há muitas considerações.
Em benefício da normalidade institucional, Lula acabou afastando a expressão golpe militar do noticiário em 100 dias. Deixou o comando da área nas mãos cuidadosas do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, que desapareceu do noticiário como se fosse notícia velha. Dizem que ele entrou caserna adentro e trancou a expressão numa cela solitária – e está de guarda diuturna à sua porta. As duas palavras assombraram, com as cores da ruptura, o noticiário nacional durante o governo Bolsonaro. É um feito e tanto.
Mas Lula concedeu habeas corpus ao “golpe”, tentando reescrever a história para resgatar a página do impeachment, com o qual seu partido foi afastado do poder por decisão do Congresso Nacional, com supervisão do Supremo Tribunal Federal e cobertura de toda mídia nacional e internacional. A liberdade vernacular para tal significado é realmente licença poética para se maquiar o passado. Mostrou mais rancor do que razão.
O mais sensível, entretanto, não é o fato de Lula III ter começado a gestão como um “sem palácio”, quase ameaçando o ministro da Casa Civil de ocupar o Alvorada ainda em reformas. A grande delicadeza nas palavras que afetam o governo vem de questionamentos aos escritos econômicos. Alguns grafados na história: gastar muito mais do que se arrecada, usar o governo como indutor superativo do crescimento foi a receita da recessão de 2015/2016.
O presidente tem falado constantemente como se não houvesse aprendido nada com esses fatos. Essa dissonância mexe com os humores e certezas de investidores – o tal mercado. O Brasil é muito atrativo, tem muito potencial, mas sempre fica apenas na promessa porque há mais estoque de bobagens sendo escritas em leis do que vento no Nordeste brasileiro à disposição de usinas eólicas.
É ainda mais complicado de se entender quando o debate chega a medidas como o marco do saneamento. Afinal, o governo tem debatido uma forma de sinalizar controle de gastos porque há pouco dinheiro para custear as despesas, investir e pagar a dívida. Conceder à iniciativa privada saneamento e fornecimento de água estava resolvendo a vida de milhões de brasileiros, que passaram a ter esgoto e água potável a tarifas baixas (no Rio de Janeiro, paga-se R$ 10 para ter o líquido em torneiras em alguns casos de vulneráveis).
Há 35 milhões de brasileiros sem água no país porque o estado falhou durante décadas em entregar o serviço básico ao cidadão. E 100 milhões sem esgoto. Agora, o poder público ganha como prêmio pela incompetência mais prazo para exercer seu direito de deixar secas as torneiras de brasileiros. Difícil entender essa briga pela cor do gato, sem obrigá-lo a caçar o rato. A lição do velho comunista precisa ser reestudada, aproveitando a viagem à milenar cultura chinesa. Até para resolver o problema de se dar visibilidade ao governo sem ocultá-lo atrás de falsas polêmicas.
*Analista político da FSB Comunicação
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Formado em Geografia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), professor da rede publica. Tenho experiência também em colégios particulares e sou especialista em Assessoria de Comunicação pela UNP.
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