Por João Pereira Coutinho / Folha

Desconfio que a inveja tenha origem no medo humano do fracasso, da solidão e do esquecimento. Inveja? Ninguém tem. Quando olhamos para os sete pecados capitais, podemos admitir os outros seis. “Admitir”? Melhor escrever: assumir com cara alegre.

“Orgulho”? Todos temos –e com muito orgulho. “Ganância”? Uma outra forma de dizer ambição. “Luxúria”? Ah, nas sociedades hiper-sexualizadas em que vivemos, o verdadeiro pecado é não ter. “Gula”? Todos gostamos de um “bon vivant”, sobretudo na era brega dos “chefs”. “Fúria”? Um homem de verdade não é um banana. E, sobre a “preguiça”, há indústrias inteiras –do turismo à publicidade– a vender o produto com vocação evangélica.

Inveja é outra história. Uma confissão de inferioridade, uma revelação torpe de caráter. O meu vizinho tem o trabalho, a casa, a mulher e os filhos que poderiam ser meus; que deveriam ser meus; que têm de ser meus.

INFELICIDADE PRÓPRIA – E nós, observando a alegria alheia, naufragando na infelicidade própria, tentando reprimir esse sentimento viscoso que cresce como um magma infernal. O leitor sabe do que falo. Ou não sabe?

Joseph Epstein ajuda a entender o assunto. Durante uma viagem de trem, li finalmente o seu delicioso ensaio sobre a inveja (“Envy”, Oxford, 133 págs., em inglês). Aprendi muito. Concordei idem.

A inveja faz parte da natureza humana; mas é a ovelha negra da alma. Pobrezinha. Se no início era o Verbo, a inveja veio a seguir: Caim matou Abel por invejar certas preferências do Altíssimo. É um caminho. Outro, proposto por Aristóteles, é cultivar a “boa inveja” e não matar ninguém. Pelo contrário: é imitar o ser invejado, aprender com ele –e, para usar uma palavra cara ao filósofo, “florescer”.

ALUNO APLICADO – Eu invejei. Eu invejo. A minha escrita – boa, má, assim-assim – é o produto dessa admiração magoada. Alguém escreve o que eu cobiço. Coloco meus óculos, retiro meu caderno, minha lapiseira. E, como um aluno aplicado, vou soletrando o talento alheio até conseguir resultado comestível. Foi assim com heróis vários da minha juventude: Camus, Greene, Waugh. Quanta nobreza da minha parte confessar isso, certo?

Errado. Eu sei e você sabe que essa não é a inveja que corta fundo. Invejar Kafka é pose. Invejar os meus amigos deixa um sabor amargo –na minha e na sua boca. O prêmio que eu não recebi. O aplauso que não foi para mim. O dinheiro que não caiu na minha conta bancária.

TRÊS DIMENSÕES – Joseph Epstein tem razão: a pergunta do invejoso é sempre a mesma. “Por que não eu?” Ela revela, no essencial, três dimensões importantes.

Primeira: invejamos aqueles que navegam nas mesmas águas (eu invejo literatos, não futebolistas).

Segunda: invejamos aqueles que navegam nas mesmas águas e que não levam grande vantagem sobre nossos talentos (eu invejo meus colegas, não Philip Roth).

Terceira: a inveja não se cura com uma simples transferência de reconhecimento (vamos dividir o prêmio?). A inveja é totalitária: os holofotes sobre nós não bastam; é preciso que eles não estejam sobre mais ninguém em volta. É doloroso escutar isso? Não deveria.

QUE INVEJA… – Com elegância suprema (que inveja…), Joseph Epstein vai viajando pela história da civilização. Na Grécia antiga, não era de bom tom atingir certos patamares de sucesso; a ira dos deuses poderia punir a comunidade. A instituição do ostracismo –adeus, homem de sucesso, até daqui a dez anos – era uma medida preventiva para acalmar as consequências potenciais da “hubris”, ou seja, desse orgulho insensato.

Hoje, é quase a mesma coisa: se você, profissional brilhante, não entende por que motivo os colegas da empresa ou da universidade ignoram ou hostilizam a sua pessoa, mil perdões, você tem que ler os gregos.

Ou, em alternativa, Karl Marx, o filósofo supremo da inveja. Observação luminosa de Epstein: o marxismo é uma filosofia de inveja que procura construir um mundo sem inveja. Faz sentido. É como destruir a paisagem campestre só para acabar com o ruído dos insectos.

INVEJA CONSCIENTES – Tenho os meus momentos de inveja, confesso. Mas também confesso que eles são cada vez mais raros e, pormenor fundamental, plenamente conscientes: observo o Diabo na sua visita sazonal e contemplo a forma infantil como ele bagunça o meu ego. Joseph Epstein não consegue explicar de onde ele vem. Mas eu desconfio que a origem está no medo humano, demasiado humano, do fracasso, da solidão e do esquecimento. Esse talvez seja um princípio de salvação: saber que aquilo que nos humilha não é o sucesso dos outros, mas o covarde que há em nós.